2.3.05

Justiça

Nunes da Cruz declarou hoje à TSF que os advogados são os principais culpados nos atrasos na nossa justiça. São declarações redutoras e irresponsáveis, que em nada se coadunam com um juiz conselheiro, vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça e candidato a presidente nas eleições que se realizam amanhã. E não são minimamente compreensíveis, nem à luz de um suposto ambiente de campanha eleitoral, até porque esta praticamente não existe, limitando-se a meia dúzia de almoços e jantares e a algumas manobras de bastidores.
O problema da justiça em Portugal atravessa vários quadrantes, não se podendo, de maneira nenhuma, culpar uma classe por si só. Acima de tudo, a justiça portuguesa tem um gravíssimo problema de mentalidade, que declarações como esta só servem para esconder e dispersar.
Deixando de lado o óbvio problema de excesso dos cursos de Direito, o principal problema dos nossos tribunais é que eles não funcionam numa lógica de produzir um efeito útil e de servir quem deles precisa.
A culpa é, evidentemente, de todos os que neles e com eles trabalham. Certamente que a classe dos advogados também terá a sua quota-parte de responsabilidades, mas nunca será a principal responsável. Basta atentarmos em alguns episódios do dia-a-dia judicial.
Quando um advogado comparece num tribunal para realizar um julgamento agendado, começa a sofrer pressões, a partir do momento em que atravessa a porta do tribunal, para fazer um acordo com a outra parte. Desde logo surge o funcionário judicial, com um ar cândido e cansado, rogando para que o advogado não o obrigue aos esforços múltiplos que a realização da diligência pressupõe.
Enquanto faz este pedido, o funcionário diz-nos que apesar de termos chegado pontualmente à hora marcada, o senhor ou senhora juiz ainda não chegou, pelo que não nos resta se não aguardar.
Após meia hora de atraso e de espera, cruzamo-nos com o Sr. ou Sra. juíz no corredor, que nos cumprimenta educada e simpaticamente, mas sem se desculpar, a caminho do seu gabinete. A hora do julgamento aproxima-se.
Puro engano. Passados 5 ou 10 minutos, voltamo-nos a cruzar com o ilustre magistrado, desta vez em sentido contrário, e acompanhado de alguns estagiários, que nos pede que conversemos com o mandatário da parte contrária, enquanto vai calmamente tomar o seu pequeno-almoço.
Vinte minutos depois, entramos finalmente na sala do juíz, que utiliza de todos os meios ao seu dispôr para constranger e ameaçar veladamente ambas as partes dos prejuízos que pode acarretar a realização do julgamento. Por vezes passam-se manhãs ou tardes inteiras em conversas estéreis porque o senhor magistrado quer a todo o custo realizar a transacção que lhe evitará a redacção da sentença.
Quando se chega à conclusão que o acordo não é possível, já não resta tempo para a realização da audiência, pelo que se terá de agendar nova data, que dado ao entupimento dos nossos tribunais, nunca será antes de decorridos 2 ou 3 meses.
Realizado o julgamento, por vezes esperam-se meses ou anos por sentenças e decisões, mesmo em tribunais que, à partida, não aparentam grande volume de processos.
Este relato é verídico e inspirado na minha experiência pessoal, mas ao contrário do senhor conselheiro não pretendo generalizar. Alguns advogados utilizam manobras dilatórias, mas, como em todas as actividades, há bons juízes e maus juízes, juízes competentes e ciosos dos seus deveres e juízes incompetentes e irresponsáveis. A questão é que a situação que narrei é comum e corrente nos nossos tribunais e aceite por todos os intervenientes, que a encaram como uma fatalidade, juízes, advogados e funcionários judiciais incluídos. Não existe uma verdadeira vontade de mudar, imperando o conformismo e a resignação.

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