30.1.06

O medo

Como era previsível, o discurso que se levantou contra a utilização abusiva das escutas telefónicas trouxe, à boleia, teses que põem em causa toda a política de investigação e a autoridade do Estado.
As declarações de Duarte Lima no parlamento, acompanhadas em tom apoteótico por aplausos de quase todos os deputados, em que aquele defendia que as escutas telefónicas apenas deveriam ser utilizadas em crimes como terrorismo ou tráfico de droga, deixando de lado os crimes de corrupção, são um mau sinal para a nossa democracia e fragilizam ainda mais o nosso poder político.
O nosso país, desde que vive em democracia, tem convivido mal com a autoridade do Estado, ainda assombrado por fantasmas do passado, fruto de um anacrónico complexo de esquerda que se levanta sempre que alguns direitos fundamentais são restringidos, ainda que levemente.
É óbvio que houve abusos e utilizações ilegais das escutas telefónicas. E ainda mais óbvio é que se tivemos conhecimento disso nos processos mais mediáticos, podemos imaginar o que se passará naqueles outros que ocupam anonimamente as prateleiras dos nossos tribunais.
No entanto, é muito perigoso que, numa louvável tentativa de acabar com esses abusos, se enverede numa total cegueira e se fragilize de forma irreparável a nossa política de investigação criminal e os seus agentes.
Para se investigar convenientemente é preciso limitar alguns direitos fundamentais e toda a sociedade deve estar preparada para isso. Devemos apertar o controlo dessa limitação, mas não podemos acabar com ela, sob pena de a criminalidade mais sofisticada e complexa escapar de vez à punição.
As declarações de Duarte Lima caem mal, principalmente vindas de quem vêm, se nos lembrarmos do seu passado, e o consenso que se gerou parece artificial.
Não podemos deixar que à boleia de alguns ideais bem intencionados, mas algo distantes da realidade, algumas entidades menos escrupulosas tentem ferir de morte a nossa já descredibilizada justiça criminal.
Os políticos deveriam ser os primeiros a perceber isso, até para seu próprio bem, pois é na sua classe que crimes como o de corrupção ganham maior relevância, daí o perigo dos caminhos que alguns parecem querer trilhar.
Num país em que os cidadãos defendem fanaticamente o seu direito de prioridade na rotunda a caminho de casa, mas onde o delito fiscal e a corrupção são pacificamente aceites e até envergonhadamente defendidos por muitos, seguir esse caminho seria um desastre para toda a democracia.  

2 comentários:

Politikos disse...

Percebo o ponto de vista. Não há, porém, qq «complexo de esquerda», visto que as declarações a que alude são de alguém de direita (para usar esta terminologia). Mas não podemos deixar a PGR, o MP e mesmo os Tribunais em total «roda livre»... Que é o que neste momento acontece... Saber para quem o PR telefonou e conhecer excertos de telefonemas anódinos do líder da oposição (Ferro Rodrigues), as chamadas da mulher, etc. só demonstram uma total falta de profissionalismo por parte da investigação criminal... Que está velha, relha e caduca... Qualquer processo, o mais simples que seja, demora 1 ano... Um ano para ouvir 3 ou 4 testemunhas e para arquivar um processo... É mau de mais... O caso do ficheiro Excel é mau demais... O poder judicial tem de prestar contas... Nenhum direito é absoluto, nem a sacrossanta independência do poder judicial... Ou então passamos de um Estado de Direito à República dos Juízes...
Os políticos não são nem piores, nem melhores do que todos nós... E todos já pactuámos com um valor declarado para a compra de casa, visando reduzir a siza, ou um serviço prestado sem recibo...
P.S. - Embora não concorde com grande parte das opiniões deste blogue, acompanho-as com o maior interesse... É bom conviver com a diferença... :-)

Pedro C. Azevedo disse...

Eu não disse que as declarações de Duarte Lima eram fruto de um complexo de esquerda. O que digo é que ele existindo, muitos se aproveitam dele, mesmo sem dele partilharem.
Quanto ao resto, tem toda a razão, como, aliás, penso que está demonstrado no texto.
Seja sempre bem vindo! É da diversidade é controvérsia que surgem as verdadeiras soluções.